domingo, agosto 06, 2006

A mão de Deus

em jornal de notícias 06/08/2006

Se Deus fosse uma pessoa, também andava de autocarro. Também ficava com dores de barriga quando a professora o apanhasse a copiar, também lia o Tio Patinhas à noite, às escondidas, debaixo dos lençóis, sentindo os primeiros prazeres da adrenalina que vicia o sangue desde cedo.

Se Deus existisse mesmo, descia à terra pelo corpo dos homens para sentir a carne, o medo, o desejo, a fome e o sono. Uns dias seria homem para navegar, lutar, conquistar, caçar, beber, rir e arrotar, outras vezes seria mulher, para sonhar, parir, esperar e amar. Se Deus quisesse, misturava-se com os homens e semeava o seu poder entre eles. Existiriam menos guerras e mais curandeiros, epidemias podiam ser evitadas e os tsunamis chegavam em carta registada com aviso de recepção.

Talvez não exista um Deus, mas várias entidades divinas que disputam o destino da Terra como as crianças que aprendem a governar o mundo em jogos de computador. Agora jogas tu, agora jogo eu, dá-me aquela país e eu ofereço-te este oceano, se te der sol e mar, tu dás-me progresso e conforto, mas não queiras tudo, onde houver terras férteis e gente boa, vou ter de largar por lá uns quantos bandidos para não ser tudo tão fácil, porque só da tristeza é que pode nascer a alegria e só sabe ser feliz quem podia ter perdido tudo ou perdeu quase tudo menos a vida.

Deus não tem cara e no entanto acreditamos nele. Acreditamos porque não queremos acreditar numa existência arbitrária em que nada nem ninguém nos pode governar. Acreditamos porque o que mais tememos é viver entregues a nós próprios. Todos nascemos de um pai e de uma mãe, todos crescemos nos braços de alguém, todos aprendemos o que é a felicidade quando nos apaixonámos pela primeira vez e engolimos a tristeza quando chorámos uma grande perda.

É melhor pensar que, quando alguém morre, foi porque Deus assim quis, que quando o mundo se mata me guerras é porque Deus assim decidiu. É mais fácil imaginar uma entidade todo-poderosa que nos trata como números ou formigas, bocados de carne viva, que por acaso usam o cérebro, que sentem dor e tristeza e que por vezes se sentem perfeitos do que um mundo sem governo, sem princípio nem fim, sem uma mão que nos guia.

A mão de Deus que se manifesta na sorte, na fortuna, nos milagres de sobrevivência, nos momentos em que damos o que temos de melhor aos outros anda por aí, em pequenos gestos e grande silêncios, a guiar-nos como uma força invisível que nos faz distinguir o bem do mal, o certo do errado, o medo da vontade, a inveja da generosidade. A mão de Deus pode ser mais uma falácia de demagogos, mas eu sinto-a quando entro no avião e imagino que regresso a casa, salva e ilesa, como um pássaro que cruza os oceanos numa missão migratória para descansar numa cama só minha onde não há lanternas nem Tios Patinhas escondidos do mundo, apenas a brancura perfeita de um sono tranquilo e doce, o sono dos mortais.

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